segunda-feira, 7 de maio de 2012

Política e moral 06 de maio de 2012 | 3h 06 Fernando Henrique Cardoso - O Estado de S.Paulo Acabo de ler o mais recente livro de Alain Touraine, Carnets de Campagne (Cadernos de Campanha), sobre a campanha de François Hollande. Sem entrar no mérito das apostas políticas do autor, é admirável a persistência com que Touraine vem estudando as agruras da sociedade contemporânea como resultado da crise da "sociedade industrial". Ele refuta análises baseadas numa sociologia dos sistemas e não, como lhe parece mais apropriado, numa sociologia dos "sujeitos históricos" e dos movimentos sociais. O livro vai direto ao ponto: não é possível conceber a política apenas como uma luta entre partidos, com programas e interesses opostos, marcados por conflitos diretos entre as classes. A globalização e o predomínio do capital financeiro-especulativo terminaram por levar o confronto a uma pugna entre o mundo do lucro (como ele designa genericamente, com o risco de condenar toda forma de capitalismo) e o mundo da defesa dos direitos humanos e de um novo individualismo com responsabilidade social, temas que Touraine já tratara em 2010 no livro Após a Crise, fundamentados em outra publicação, Penser Autrement, de 2007. A ideia central está resumida na parte final de Após a Crise: ou nos abandonamos às crises, esperando a catástrofe final, ou criamos um novo tipo de vida econômica e social. Neste é preciso reviver o apelo aos direitos universais da pessoa humana à existência, à liberdade, aos pertencimentos sociais e culturais - portanto, à diversidade de identidades -, que estão sendo ameaçados pelo mundo desumano do lucro. É preciso contrapor os temas morais ao predomínio do econômico. Há uma demanda crescente de respeito por parte dos cidadãos. Estes aderem a valores não como decorrência automática de serem patrões, empregados, ricos, pobres, pertencerem a esta ou àquela organização, mas por motivos morais e culturais. Com essa perspectiva, Touraine responde categoricamente que não é com os partidos que a política ganhará outra vez legitimidade. As instituições estão petrificadas. Só os movimentos sociais e de opinião, movidos por um novo humanismo expresso por lideranças respeitadas, pode despertar a confiança perdida. Só assim haverá força capaz de se opor aos interesses institucionais do capitalismo financeiro-especulador, que transformou o lucro em motor do cotidiano. Daí a importância de novos atores, de novos "sujeitos sociais", portadores de uma visão de futuro que rejeite o statu quo. A partir daí, Touraine, sociólogo experimentado, não propõe uma prédica "moralista", mas sim novos rumos para a sociedade. Estes, no caso da França, não podem consistir numa volta à "social-democracia", ou seja, ao que representou na sociedade industrial o acesso aos bens públicos pelos trabalhadores; muito menos ao neoliberalismo gerador do consumismo que mantém o carrossel do lucro. Trata-se de fazer o mundo dos interesses ceder lugar ao mundo dos direitos e à luta contra os poderes que os recusam às populações. É preciso libertar o pensamento político da mera análise econômica. Os exemplos de insatisfação abundam, e não só na França. Vejam-se os "indignados" espanhóis, os rebeldes da Praça da Paz Celestial de Pequim ou os atores da Primavera Árabe. Falta dar-lhes objetivos políticos que, acrescento eu, criem uma nova institucionalidade, mais aberta ao individualismo responsável e à ação social direta que marcam a contemporaneidade. Por que escrevo isso aqui e agora? Porque, mutatis mutandis, também no Brasil se sentem os efeitos dessa crise. Não tanto em seus aspectos econômicos, mas porque, havendo independência relativa entre as esferas econômicas e políticas, a temática referida por Touraine está presente entre nós. Se me parece um erro reduzir o sentimento das ruas a uma crise de indignação moral, é também errado não perceber que a crise institucional bate às nossas portas e as respostas não podem ser "economicistas". A insatisfação social é difusa: é a corrupção disseminada, são as filas do SUS e seu descaso para com as pessoas, é o congestionamento do trânsito, são as cheias e os deslizamentos dos morros, são a violência e o mundo das drogas, é a morosidade da Justiça, enfim, um rosário de mal-estar cotidiano que não decorre de uma carência monetária direta - embora também haja exagero quanto ao bem-estar material da população -, mas constitui a base para manifestações de insatisfação. Por outro lado, cada vez que uma instituição, dessas que aos olhos do povo aparecem como carcomidas, reage e fala em defesa das pessoas e dos seus direitos, o alívio é grande. O Supremo Tribunal Federal, numa série de decisões recentes, é um bom exemplo. No momento em que o Brasil parece mirar no espelho retrovisor das corrupções, dos abusos e leniências das autoridades com o malfeito, corre-se o risco de crer que tudo dá no mesmo: os partidos, as instituições, as lideranças políticas, tudo estaria comprometido. É hora, portanto, para um discurso que, sem olhar para o retrovisor e sem bater boca com "o outro lado", até porque os lados estão confundidos, surja de base moral para mobilizar a população. Quem sabe, como na França, a palavra-chave seja outra vez igualdade. Na medida em que, por exemplo, se vê o Tesouro engordar o caixa das grandes empresas à custa dos contribuintes via BNDES, uma palavra por mais igualdade, até mesmo tributária, pode mobilizar. Para tal é preciso politizar o que aparece como constatação tecnocrática e denunciar os abusos usando a linguagem do povo. Está na moda falar sobre as "novas classes médias", muitas vezes com exagero. Se até agora elas vão ao embalo da ascensão social, amanhã demandarão serviços públicos melhores e poderão ser mais críticas das políticas populistas, pois são fruto de uma sociedade que é "da informação", está conectada. Crescentemente, cada um terá de dizer se está ou não de acordo com a agenda que lhe é proposta. As camadas emergentes não são prisioneiras de um status social que regule seu comportamento. Aos líderes cabe politizar o discurso, no melhor sentido, e com ele tocar a alma dos recém-vindos à participação social, não para que entrem num partido (como no passado), mas para que "tomem partido" contra tanto horror perante os céus. Isso só ocorrerá se os dirigentes forem capazes de propor uma agenda nova, com ressonância nacional, embasada em crenças e esperança. Sem a distinção entre bem e mal não há política verdadeira. É esse o desafio para quem queira renovar. SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
A esquerda pisca para a direita 06 de maio de 2012 Gaudêncio Torquato - O Estado de S.Paulo Não há mais como escamotear: a era dos conceitos clássicos que banhavam a política está cedendo lugar ao ciclo da personalização, cujos contornos apontam para a prevalência dos indivíduos sobre as ideias, o predomínio da forma sobre o conteúdo. As ideologias, neste início da segunda década do século 21, bifurcam-se na encruzilhada dos desafios de nações às voltas com profunda crise econômica. O continente europeu, berço da civilização democrática, é o cenário mais visível dessa mudança. Lá a esquerda desloca seu eixo piscando para a direita, atenuando as cores do seu antigo discurso. Já não eleva ao alto do mastro a bandeira da "propriedade coletiva dos meios de produção". Nem a provável vitória de François Hollande, hoje, na eleição presidencial francesa, significará a entronização do pavilhão vermelho no Palácio do Eliseu. O moderado líder finca pé na justiça social, escopo central dos partidos de esquerda, mas deixa ver a inclinação à Terceira Via, mescla de elementos do socialismo e do liberalismo, criada por Tony Blair (1997-2007), a partir do Reino Unido, e endossada pelo primeiro-ministro alemão Gerhard Schröder (1998-2005). O estudioso de linguagem política Damon Mayaffre (Estado, 29/4), ao constatar tal fato, registra que o empobrecimento do discurso, particularmente na França e no Reino Unido, é um fenômeno que ocorre há 50 anos. No velho discurso podia-se ler um acervo composto por conceitos como liberdade, igualdade, democracia, capitalismo, socialismo. Hoje países democráticos, centrais e periféricos, entre os quais o Brasil, usam esses substantivos sem muita convicção. Recorde-se que a esquerda começou a redesenhar seu ideário após o esfacelamento do comunismo. A solução foi juntar os tijolos fragmentados do socialismo à argamassa do liberalismo. Sob a nova composição, a política abriu espaço para novas formas de contestação e novos polos de representação, hoje presentes na miríade de grupos, entidades e organizações sindicais. As clivagens partidárias do passado ganharam nova roupagem, na esteira do arrefecimento do antagonismo de classes e do enfraquecimento dos particularismos ideológicos. O desvanecimento dos mecanismos tradicionais da política - partidos, Parlamentos, ideologias, bases - e a criação de um novo triângulo do poder, juntando esfera política, burocracia governamental e círculos de negócios, fizeram emergir a era do eu, povoada por líderes e mandatários de todos os espectros, cada qual portando as vestimentas fosforescentes do Estado-espetáculo. Assim, o progressivo declínio das estruturas clássicas da política propiciou, em contraponto, um fluxo ascendente de personagens que passaram a ter visibilidade na onda midiática. A forma tornou-se mais importante que o conteúdo. São um exemplo nossas campanhas eleitorais, cheias de cosmética e centradas em fulanos, sicranos e beltranos. Pela importância da França na textura democrática, é razoável supor que o redesenho do discurso que ali se faz serve para espelhar o atual estado da política no mundo. A começar pela desconstrução que o presidente francês promoveu em sua identidade. Damon Mayaffre mostra que, na sua primeira campanha, Nicolas Sarkozy se identificou plenamente com o espírito da direita, puxando conceitos como moral, mérito, trabalho, esforço, civismo. Agora ataca as instituições da República, como Justiça, imprensa, sindicatos. No fundo, trata-se de um ataque a ele mesmo, eis que o presidente encarna o espírito republicano e, por consequência, seus corpos intermediários. Tal postura tinha lógica em 2007, quando se elegeu com o slogan da ruptura. Mas hoje esse ideário serve à família Le Pen (Marine e seu pai, Jean-Marie) e à Frente Nacional, beneficiários maiores do pleito francês. Formou-se o paradoxo: Sarkozy pregou o dissenso e Hollande defendeu o consenso, quando a lógica sugeria o contrário. O que podemos extrair da lição francesa para a nossa realidade? Os recados são claros. Vejamos. Ponto 1: não há mais sentido em brandir bordões e refrãos insuflando a luta de classes, pobres contra ricos, socialismo contra liberalismo. Parcela dos nossos representantes continua a erguer bandeiras rotas. Ponto 2: atacar as estruturas intermediárias da República - Parlamento, Judiciário, imprensa - é desconstruir o próprio edifício da democracia. Desvios cometidos por pessoas físicas não podem ser confundidos com a importância das instituições democráticas. No entanto, viceja por estas plagas uma peroração que defende o controle da mídia, a revelar a simpatia de grupos pelo Estado autoritário. Ponto 3: o combate às elites políticas por quem as integra soa demagógico. Mandatários que escalaram os degraus da pirâmide para chegar ao topo devem saber que também eles integram o Olimpo elitista. Ponto 4: é um risco ancorar a estabilidade de um governo numa base nacionalista e protecionista. A deriva populista que uma atitude nessa direção proporciona, apesar de gerar conforto no curto prazo, ameaça comprometer o conceito internacional de um país. Olhe-se para os casos da Argentina e da Bolívia. A decisão da presidente Cristina Kirchner de nacionalizar 51% do patrimônio da petrolífera YPF, controlada pela espanhola Repsol, e a decisão do presidente Evo Morales de expropriar as ações da rede elétrica espanhola SAU podem até servir à almejada estratégia de aprovação popular. Mas quem garante que, mais adiante, não se transformarão em bumerangue? Decisões dessa ordem têm o condão de conferir aos governantes uma imagem situada na banda esquerda do arco ideológico. Mas a esquerda tem sofrido, e muito, para debelar o caos econômico. A Europa que o diga. Ali a crise fez cair, nos últimos três anos, 11 dos 15 governos de esquerda ou de centro-esquerda - Espanha, Reino Unido, Portugal, Bulgária, Finlândia, Hungria, Irlanda, Letônia, Lituânia, Eslovênia e Holanda. O aviso é oportuno: medidas populistas têm fôlego curto. JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO